sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O Imaginário no Cinematógrafo – O exemplo de George Méliès




“Se permitirmos que a fotografia invada o terreno do impalpável e do imaginário, de tudo o que só vale porque o homem lhe acrescenta a sua alma, então ai de nós!”

Charles Baudelaire, “Le public moderne et la photographie”

Em 1859, ano em que proferiu estas palavras pessimistas a respeito de uma categorização da fotografia como arte, Baudelaire estava longe de imaginar que uma tecnologia sucessora desta, o cinematógrafo, iria invadir de forma tão avassaladora esse terreno do imaginário.
Não houve ninguém na época, que de forma tão explícita, pisasse este terreno, como George Mélies (1861-1938). Ilusionista famoso em França, deixou-se levar pela emoção do invento tecnológico mais famoso na sua época, e começou a criar filmes puramente documentais, utilizando deste modo a máquina para a função para a qual foi criada. Quis o destino que um simples erro técnico (a máquina encravou durante a gravação de uma cena, e quando visionou o filme, as figuras na rua “saltavam” e “mudavam” de posição como que por magia), o levasse a explorar a máquina de forma inovadora, tornando-o o percursor dos efeitos especiais e do género de ficção científica.

Arlindo Machado, no livro "Máquina e Imaginário", reflecte sobre estas questões. O autor diferencia o trabalho com a tecnologia do trabalho artístico. O trabalho com a tecnologia relaciona-se com a sistematização e eliminação do improviso. Pelo contrário, o trabalho artístico relaciona-se com a ambiguidade, com os imprevistos, a desordem e o imaginário. Com o surgimento dos novos meios técnicos (a maquina fotográfica, o cinematógrafo), esta divisão torna-se paradoxal no sentido que atinge o Artista, tentado a experimentar os novos meios técnicos.

Convém lembrar que o cinematógrafo foi criado com um intuito técnico, científico, e os primeiros filmes produzidos eram puramente documentais. A máquina de filmar tinha a função de captar uma acção do “real”, gravá-la numa película, sendo posteriormente exibida para um público. Ou seja, uma função que, a longo prazo, poderia cair numa estagnação.
Arlindo Machado veio defender exactamente que cabe ao Artista assegurar a vitalidade da máquina, para evitar que ela caia nessa estagnação. A verdadeira arte produzida com as máquinas seria aquela que inverteria as suas funções, que exploraria a máquina ao máximo, procurando obter efeitos e respostas inovadoras e criativas, imprimindo uma vontade milenar de intervir no mundo dos sonhos e do imaginário.

Méliès explorou como ninguém, embora limitado pelos recursos da sua época, as potencialidades na máquina (dupla exposição, pausas, a técnica do stop-motion, congelamento, inversão de movimentos, etc), tornando-o percursor dos efeitos especiais e do género de ficção científica. O artista criou assim um mundo mágico e imaginário, levando o cinema a territórios até então inexplorados, subvertendo assim a função para a qual a máquina foi criada.

Assistirmos, nos dias de hoje, a um qualquer filme de efeitos especiais é a melhor homenagem que podemos fazer a Méliès. No entanto, fica aqui um exemplo que os Smashing Pumpkins fizeram em 1996, explorando o mundo de Mélies e o seu mais famoso filme “A Viagem à Lua”, de 1902.



Cristina Braga
André Mantas

4 comentários:

Pedro Félix disse...

1. Ele há um outro videoclip da Debie Harry (ex-Blondie) com imagens da "Viagem à Lua" do Sr Méliès (creio que a música é "French Kiss in the USA")

2. É curioso como 'a arte de Méliès' influenciou outras personagens fundamentais para o desenvolvimento da cinematografia, como Émile Cohl, em França, ou Edwin Porter, nos States. E não é que tanto um como les outres foram votados ao esquecimento durante décadas.

3. Gostei bué do texto. Outros comentários fa-los-ei na presença dos autores.

PF

Pedro Félix disse...

4. Tal como os irmãos Lumière, também Méliès começou por fazer as suas 'vistas' no exterior (por ex. "Partie de Cartes"), no entanto, cedo se apercebeu que teria melhores resultados se não estivesse sujeito aos homores de S. Pedro. Vai daí, construiu uma estufa para filmar as suas aventuras, que só não foi o primeiro estúdio da história do cinema porque o Sr. Edison e o amigo (leia-se empregado) Dickson já tinham feito um tal de "Black Maria". O nascimento de espaços específicos/estúdios seria para o uso exclusivo da tecnologia (porque dissolve o improviso) ou seria também ao serviço da arte? Nós hoje vemos os filmes dos pioneiros apenas numa vertente técnica e científica tal como supostamente eles os veriam na época?

Andre Boto disse...

Bom texto, simples e objectivo.

Duas ideias dá para retirar daqui.

1- Que a pequenez do ser humano é enorme, por desde sempre nunca ter aceitado a inovação, evolução e a diferença de ideologias.

2- Que nem sempre o erro é necessariamente mau, neste caso parece que deu frutos, enfim, sem erros ou sem eles, sempre conseguimos aprender algo com aquilo que fazemos e com o que os outros fazem.
Podemos não aprender como fazer algo bem feito, mas muitas vezes é mais útil aprender como não fazer mal.

Max Spencer-Dohner disse...

Muito interessante. Bom post!